quarta-feira, 28 de maio de 2014

Relato - Experiência com Agricultura Familiar

Pedro Grabois

Dia 2 de abril de 2014, Mendes, pequena cidade do interior do estado do Rio de Janeiro. Cerca de 30 pessoas reunidas debaixo do sol num pequeno sítio de alto de morro, entre produtores rurais, técnicos do SEBRAE, instrutores do Programa de Produção Agroecológica Integrada e Sustentável (PAIS) e funcionários da prefeitura de Mendes. O objetivo do encontro: oferecer uma capacitação e promover um mutirão para implementar um sistema interessantíssimo de produção agrícola sem o uso de agrotóxicos. O sistema inclui: materiais para a irrigação por gotejamento (a partir de uma caixa d’água de 5 mil litros), um galinheiro (com 9 galinhas e 1 galo), uma série de  mandalas de plantação situadas em torno do galinheiro, grãos, dentre outros materiais. Este kit é fornecido a cada produtor contemplado pelo PAIS, além do suporte dos técnicos especializados.

Dentre os pequenos produtores rurais presentes, a maioria já utilizava a terra como complemento da renda e/ou como complemento do fornecimento de alimentos para própria família. Todos tinham uma mesma expectativa: tornar a riqueza da terra algo constante, organizado, planejado, de modo a poder viver da mesma (alimentando-se diretamente e usufruindo da renda obtida pela venda dos produtos plantados). Expectativa partilhada pelos funcionários da Prefeitura, uma vez que a produção agrícola estando organizada gera riqueza não só para quem trabalha na terra, mas para toda a cidade. Esta também era (e é) a expectativa dos meus tios Marilisse e Danilo, que cuidam do Sítio do Vôlisse, situado no distrito de Engenheiro Morsing (Mendes-RJ).

Antes de pegarmos no trabalho pesado (cavar; fixar vigas de madeira para o galinheiro; levantar uma pequena plataforma para colocar a caixa d’água, dentre outras atividades), conversamos um pouco sobre a riqueza que tínhamos nas mãos ali enquanto pequenos produtores rurais. A agricultura familiar é responsável por fornecer 70% dos alimentos da mesa dos brasileiros; existe uma lei (n. 11.947/2009) que obriga que no mínimo 30% da alimentação escolar seja oriunda da “agricultura familiar e do empreendedor familiar rural ou de suas organizações, priorizando-se os assentamentos da reforma agrária, as comunidades tradicionais indígenas e comunidades quilombolas”; os consumidores cada vez mais exigentes dão grande valor à alimentação produzida sem o uso de agrotóxicos.

Aqui, cabe uma conclusão desse brevíssimo relato. A riqueza que a agricultura familiar tem nas mãos é enorme e não passa pelas estratégias do agronegócio. No agronegócio, quanto mais recursos tecnológicos e químicos se utiliza, mais retorno se obtém da terra plantada. Para explorar assim a terra, é preciso grande soma financeira, coisa que os pequenos agricultores não têm. Nessa briga então, se o(a) pequeno(a) quiser utilizar as mesmas estratégias do agronegócio, sairá perdendo. O(a) pequeno(a) agricultor(a) tem uma riqueza “natural” nas mãos. No entanto, seu desafio está em planejar a produção e ser incluído na rede de fornecimento da alimentação escolar. Produzindo regularmente e sem o uso do veneno, as famílias rurais têm a possibilidade de obter um retorno fixo não só para si, mas toda a cidade na qual estão inseridas. Com certeza, os desafios são bem mais amplos que isso, mas espero que juntos, cidade e campo, possamos produzir riquezas para as famílias, as escolas, enfim, para nós mesmos, sem passar por uma indústria que usa sistematicamente produtos tóxicos na produção de alimentos. 

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Pedro Grabois é articulador da Rede FALE e doutorando em Filosofia pela UERJ

sexta-feira, 23 de maio de 2014

Jesus contra o preconceito

Ariovaldo Ramos

Texto : João 4:1-34

O Pr. Neil Barreto disse que o jejum que Jesus pede é o de nos negarmos para seguí-lo, isto é, que façamos jejum de nós mesmos. Do que se alimenta aquele que faz o jejum que Deus pede? Do que se alimenta aquele que negou-se a si mesmo? O que lhe dá compensação pessoal? No que ele se realiza? Quero responder à essas perguntas a partir do diálogo de Jesus com a mulher da Samaria. 

Jesus estava, estrategicamente, a voltar para Galiléia, e decidiu passar por Samaria, o texto diz: “era-lhe necessário atravessar a província de Samaria” - não era uma necessidade geográfica, ou seja, esse não era o único jeito de chegar na Galileia partindo do sul. Ele podia ir para a Galiléia sem passar pela Samaria, até porque a relação entre judeus e samaritanos era muito ruim, e, portanto, era sempre arriscado atravessar as terras samaritanas. Porém, como o evangelho de João nos diz, “era-lhe necessário atravessar a província de Samaria”, então, eu concluo que foi uma determinação de Jesus, alguma orientação que Ele recebeu do Pai, de que Ele tinha de passar por Samaria. 

Era hora do almoço, Ele estava com sede e os discípulos foram comprar comida. Ele estava a beira de um poço, quando veio uma mulher samaritana buscar água. O horário que essa mulher foi buscar água era absolutamente impróprio, pois a região era semi-desértica, fazia muito calor, e as mulheres não iam buscar água na hora do almoço. O fato daquela mulher estar lá, por volta do meio dia, significava que ela tinha algum problema com a comunidade dela. Ou ela não andava com as mulheres da comunidade, porque haviam sido proibidas de andar com ela, ou ela decidiu que não iria andar com as mulheres. Não sei. Porém uma coisa é certa, algo havia acontecido.

Jesus está no poço, ela chega, e Jesus diz: “Da-me de beber!" Ao ouvir isso, a mulher reagiu: “Como o senhor, sendo judeu, pede a mim, uma samaritana, água para beber? Porque os judeus e os samaritanos não se davam." O que precisamos saber é que a situação era muito densa. Primeiro, um mestre não devia falar com uma mulher. Segundo, especialmente se fosse samaritana. Terceiro, um judeu não podia se alimentar ou beber em prato ou cuia de samaritano, pois, se isso acontecesse, ele ficaria quarenta dias sob maldição, impossibilitado de participar do culto a Deus.

O ódio dos judeus aos samaritanos era tão grande, que todo judeu, principalmente os fariseus, ao se levantarem de manhã, davam graças a Deus por não terem nascido nem mulher e nem samaritano. Por isso que, quando Jesus diz à mulher: “Da-me de beber", ele estava quebrando um grande preconceito, na verdade quatro: o primeiro preconceito, que Ele ele quebra, era o de falar com uma mulher, o segundo, era o de falar com alguém samaritano, o terceiro, era o de pedir para beber água no mesmo copo que ela (o que o tornaria imundo para os judeus) e, o quarto, era discutir teologia com a mulher.

Quando a mulher diz “ Como o senhor, sendo judeu, pede a mim, uma samaritana, água para beber?”, Jesus se explica, e começa uma conversa teológica com a mulher, o que era absolutamente proibido, pois os mestres não podiam falar com as mulheres, e as mulheres não tinham o direito de receber nenhuma informação sobre a revelação, sobre as Escrituras e sobre a vontade de Deus. Essas verdades divinas, só podiam ser ditas aos homens, e eles as passavam para as mulheres (esposa, filhas, irmãs), pois elas não tinham acesso direto. 

Jesus começa a dizer para ela: “Se você conhecesse o dom de Deus e quem lhe está pedindo água, você lhe teria pedido e ele lhe teria dado água viva”. Água viva, naquela época era a forma de se referir à um rio de águas correntes. Ele quem puxa o assunto, Ele que chama a mulher para conversar sobre coisas espirituais, o que significa que Jesus está quebrando todos os padrões ao começar essa conversa. A mulher, dando continuidade à conversa diz: “ O senhor não tem com que tirar água, e o poço é fundo. Onde pode conseguir essa água viva?” Ela está sob impacto de um homem judeu que pede para beber água do mesmo copo que ela, então, percebe que Ele está tratando de uma coisa espiritual e diz: “ és, porventura, maior que nosso pai Jacó, que nos deu o poço, do qual ele mesmo bebeu, bem como seus filhos e seu gado?” E Jesus diz que era maior que Jacó ao dizer: “Quem beber dessa água terá sede outra vez, mas quem beber da água que eu lhe der nunca mais terá sede. Ao contrario, a água que eu lhe der se tornará nele uma fonte de água a jorrar para a vida eterna” . Ele estava falando do Espirito Santo, o que o faz quebrar outro preconceito, oferecendo o Espirito Santo para uma mulher samaritana (que é o cumprimento da profecia de Joel, que os judeus entenderam que era apenas para eles. Jesus oferece a profecia, que, portanto, seria apenas para os judeus, para a mulher samaritana). 

Com Jesus dando continuidade à conversa, a mulher responde: “Senhor, dê-me dessa água, para que eu não tenha mais sede, nem precise voltar aqui para tirar água”. Nesse momento, parece que Jesus retoma á posição de mestre, e diz a ela: “Vá, chame o seu marido e volte”, ao que ela respondeu: “Não tenho marido” , e Jesus replicou: “Você falou corretamente, dizendo que não tem marido. O fato é que você já teve cinco; e o homem com quem agora vive não é seu marido. O que você acabou de dizer é verdade.” A mulher leva um susto e diz: “Vejo que és profeta!”

Agora, o que Ele diz dessa mulher é muito curioso, pois essa mulher teve cinco maridos. A gente tem, como a primeira impressão, a de que estamos tratando com uma mulher com um problema moral seríssimo, porém, não faz sentido pensar assim, porque ela teve cinco maridos, não cinco amantes. Ela devia ser uma mulher extraordinária, pois cinco homens quiseram se casar com ela. Mas, quatro maridos deram-lhe carta de divórcio, e o quinto, deve tê-la repudiado; ela se une a um sexto homem, mas esse homem não é seu marido. Do ponto de vista daquela tradição, tanto da judaica quanto da samaritana, ela estava em pecado, porque o quinto marido, provavelmente, a repudiou. Quando o sexto homem quis se casar com ela, mesmo assim, ele não pôde, pois ela havia sido repudiada, não havia recebido carta de divórcio, então, o relacionamento era tido como adulterino.

Que mulher extraordinária é essa, que cinco homens querem se casar com ela? E que mulher é essa que quatro homens deram-lhe carta de divórcio e o quinto, provavelmente, a repudiou? Não deve ser por questões morais, porque se fosse, ela não se casaria pela segunda vez... De jeito nenhum! Essa história de sucessivos casamentos, fruto do desejo que despertava, mesclada com sucessivas rejeições, parece que se explica por ela ser o tipo de mulher que ela demonstra ser, nesse diálogo com Jesus, uma mulher que tem opinião própria, o que, naquela época, era o mesmo que ofender séria e profundamente a um homem.

Me lembro que, certa feita, os organizadores de um congresso de missões, trouxeram do Oriente Médio, um ex muçulmano convertido à Cristo, que era uma espécie de consultor para missionários ocidentais que queriam ir para o Oriente Médio, que sempre era chamado para dar treinamento a esses missionários. 

Naquele congresso especifico, algumas irmãs pediram para ter uma reunião com ele, pois queriam saber como poderiam ir para o Oriente Médio para evangelizar as mulheres. Esse irmão, então, começou a aula para as mulheres dizendo que elas nunca iriam conseguir evangelizar as mulheres do mundo dele. Quando elas perguntaram, por quê? Ele disse “Porque as senhoras estão olhando nos meus olhos, me fazendo uma pergunta direta, e não pediram licença para fazer a pergunta. Isso é inadmissível para uma mulher na minha cultura. Elas estariam olhando para o chão, não me contestariam, e pediriam permissão para me fazer uma pergunta”. 

Essa mulher samaritana tinha essa postura, reprovada pelo consultor missionário, de quem não se submete facilmente, de que tem opinião própria, de quem quer participar, e isso era um tabu. E vemos isso na forma como ela fala com Jesus, se contrapondo a Ele: “Como o senhor, sendo judeu, pede a mim, uma samaritana, água para beber?”. Quando ela diz: “acaso o senhor é maior do que o nosso pai Jacó?”, vemos a percepção teológica dessa mulher. Ela sabe que está diante de um milagre, pois, aquele poço tinha mais de mil anos, e continuava a dar água. 

Ao ser perguntado se era maior que Jacó, Jesus responde, como se dissesse: “Sou, pois que o eu ofereço é Vida Eterna, e Jacó não tinha como oferecer isso”. Assim que a mulher disse que queria da água, Jesus pede para ela chamar seu marido, ao que ela revela que não tinha marido. É como se ela dissesse: não tenho ninguém a quem chamar, não chamarei ninguém, se quiser falar sobre algo comigo, faça-o a mim, ou não o fará. Essa senhora parece mais uma precursora do que chamaríamos, hoje, de emancipação feminina.

Quando aquela mulher disse a Jesus que não tinha marido, foi surpreendida por Jesus que disse: “é verdade, pois, esse que está com você, agora, não é seu marido, isso você falou com verdade”. Estamos diante de uma mulher especial, sofrendo o tabu da sua geração. 

Porém, ela está sendo salva por um Deus que quebra tabus, desconsidera preconceitos e liberta os homens dos efeitos destes preconceitos, assim como clama aos preconceituosos que se arrependam, enquanto é possível. Preconceito é o supra-sumo da auto veneração. Qualquer pessoa que discrimine a outro ser humano é réu do inferno.

Jesus começa a dizer-lhe algo que ela jamais esperaria ouvir de um homem, ainda mais de um judeu, ainda mais de um mestre. Ela diz, “senhor, vejo que tu és profeta. Nossos pais adoravam neste monte, vós, entretanto dizeis que em Jerusalém é o lugar onde se deve adorar” e Jesus lhe disse, “Mulher, podes crer que a hora vem quando nem neste monte, nem em Jerusalém adorareis o Pai, vós adorais o que não conheceis, nós adoramos o que conhecemos porque a salvação vem dos judeus, mas vem a hora, e já chegou, em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espirito e em verdade porque são estes que o Pai procura para seus adoradores. Deus é espirito, e importa que seus adoradores o adorem em espirito e em verdade”. Essa frase de Jesus é extraordinária, porque adorar não é cantar. Adorar, é pedir perdão para Deus.

Quando ela diz “nossos pais adoravam nesse monte” está apontando para o monte Gerizim, onde as tribos do norte construíram um templo, que rivalizava com o templo de Jerusalem. Historicamente, o monte de Gerizim era o lugar mais adequado para construir um templo, pois quase tudo o que aconteceu na história de Israel em termos de adoração a Deus, aconteceu no monte Gerizim. Davi, entretanto, conquistou a terra dos Jebuzeus, conquistou o monte Sião, conquistou Jerusalém, e o Senhor decidiu que se poderia construir o templo em Jerusalem. 

O que se fazia no templo? A pessoa que ia no templo, tanto em Gerizim, quanto em Jerusalem, ia pedir perdão. Por que o sujeito está indo no templo? Porque ele quebrou a lei de Moisés e vai levar um animal para morrer no lugar dele. Adorar a Deus, é pedir perdão. 

E isso me parece absolutamente natural, porque tudo o que eu disser a Deus, não o alcança. Eu posso dizer que Deus é bom, mas o bom que eu sou capaz de dizer é infinitamente menor do que o bom que Deus é. Eu posso dizer que Deus é amor, mas o amor que eu sou capaz de dizer, é infinitamente menor que o amor que Deus é. Então quando é que a minha palavra realmente toca Deus? Quando eu digo a Ele: ‘ Me perdoa Senhor, faça em mim a tua vontade’. Isso é adorar a Deus.
Jesus diz para a mulher “O lugar de adorar é em Jerusalém, pois a Salvação vem dos judeus, nós recebemos a revelação, "mas vem a hora, e já chegou, em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espirito e em verdade”, ou seja, já chegou a hora, em que você vai poder pedir perdão a Deus a qualquer hora e em qualquer lugar. Porque Deus é espirito, então Ele está em todos os lugares, Deus não pode ser contido em lugar nenhum e em espaço algum. 

Se ela tivesse ido mais longe na conversa, poderia ter feito duas perguntas. A primeira pergunta seria: ‘então não precisa mais de templo?’ e Jesus diria “não, não precisa mais de templo, nem em Jerusalém, nem no monte Gerizim. O templo passará a ser você e todo lugar.“ A segunda pergunta que ela poderia ter feito é: “e quem vai morrer em meu lugar?“ E Jesus responderia: “eu morro no seu lugar“

Repare que essa mulher é brilhante, pois quando ela diz a Jesus “Nossos pais adoravam neste monte, vós, entretanto dizeis que em Jerusalém é o lugar onde se deve adorar” o que ela estava querendo dizer a Jesus era algo, como: ‘eu sei que tenho um problema para resolver com Deus, mas ninguém mais sabe aonde se resolve o problema com Deus, os nossos pais disseram que era em Gerizim, e vocês dizem que é em Jerusalém, ou seja, não se sabe, ao certo, de nada’

Jesus interrompe a mulher e diz algo, como: ‘você sabe sim, é lá em Jerusalém. Nós adoramos o que conhecemos e vocês adoram o que não conhecem, porque a salvação vem dos judeus’. O assunto é Salvação. Ele continua: ‘mas chegou a hora em que você vai poder pedir perdão a Deus em qualquer lugar’. 

A mulher diz algo parecido a: “Eu sei, que muitas coisas vão mudar, QUANDO VIER O MESSIAS CHAMADO O CRISTO!“ Os fariseus não perceberam isso, e ela percebeu. O que ela parece dizer é: ‘eu sei que tudo é provisório e somente o Messias, quando vier, nos anunciará todas as coisas, e trará o definitivo. Isso foi tão extraordinário, que ela “forçou” Jesus a se revelar! E ele diz: “o Cristo sou EU. EU que falo contigo!“ Jesus se revela como aquele que veio anunciar todas as coisas. 

Ela percebeu que tudo era provisório e que só havia um alguém capaz de mudar isso, de pôr fim à provisoriedade dessas coisas, e esse alguém era o Messias. É como se ela estivesse dizendo a ela estava dizendo a Jesus: ‘O senhor pode ser profeta, mas o senhor está indo longe demais. Só o Messias pode mudar isso’, e Jesus responde, algo como: ‘exato! Eu sou o Messias, eu vim para mudar todas as coisa!’ 

Jesus quebrou muitos preconceitos nesse texto. Primeiro, o dos judeus com os samaritanos ao conversar com uma mulher samaritana; depois, o dos homens judeus contra as mulheres; depois, o da cuia comum, pois, um judeu não podia beber água na mesma cuia que um samaritano (pois se ele o fizesse estaria imundo e ficaria 40 dias sem poder prestar culto a Deus); depois, quando começou a falar com a mulher, Jesus a tratou como se tratava um mestre, pois ficaram discutindo assuntos teológicos. E mais, Jesus ofereceu Água Viva (o Espírito Santo) para aquela mulher já cansada de tanto tabu, de tanto divórcio, só porque tinha opinião própria, e de, agora, estar exposta ao vitupério por causa de uma sociedade preconceituosa. A Água Viva, a presença do Espírito Santo, seria a vida eterna dentro dela, que a tornaria uma pessoa acima de qualquer preconceito, ou melhor, além de qualquer preconceituoso.

Quando qualquer pessoa trata o próximo com e a partir do preconceito, essa pessoa demonstra ser um assassino em potencial, e se torna réu do inferno. Estamos assistindo isso no Brasil cada vez mais. Em pleno século XXI está ficando cada vez pior ser negro no Brasil, e eu vejo isso dentro da igreja. Esse preconceito deve estar consumindo Jesus, no que resta de seus sofrimentos pela Igreja.
Do quê se alimenta alguém que fez jejum de si mesmo? Ele se alimenta de libertar o próximo, de todos aqueles que não conseguem fazer jejum de si mesmo. E nesse mundo moderno, nós temos o preconceito racial sendo retomado ao nível da náusea, e temos esse preconceito com as mulheres que estão sendo tratadas, cada vez mais, como se todas elas fossem escravas sexuais: na violência que sofrem no ambiente doméstico, nas violações, na forma como são tratadas e na forma como são expostas na mídia, como se fossem mercadorias.

Então, do quê que se alimenta alguém que faz jejum de si mesmo? Se alimenta da disposição e da disponibilidade nas mãos de Deus para libertar todos aqueles que sofrem preconceito por parte de gente que se recusa a fazer jejum de si mesmo. E a denunciar todo esse nível de preconceito.
Jesus libertou essa mulher de uma forma impressionante. Jesus ainda vai quebrar mais preconceitos, porque, quando chegam os judeus, seus discípulos, eles se admiram. Nesse trecho: “Os discípulos chegaram e se admiraram”, é interessante notar a reação descrita - o “se admiraram“ é levar um susto, se surpreender. Como se eles estivessem dizendo: “o que deu nele?” Mas como era Jesus, eles não disseram nada. 

Então começaram a oferecer comida para Jesus, que disse ter uma comida que ninguém conhecia, e que a comida, que ele tinha, era fazer a vontade daquele o havia enviado. “A minha comida consiste em fazer a vontade daquele que me enviou a realizar a sua obra”. Qual é a obra de Deus? Libertar os seres humanos de toda forma de opressão, a começar pela opressão que nasce do preconceito, que é a opressão mais comum porque é a menos rechaçada. E é a menos enfrentada porque é socialmente aceita. Por exemplo, é socialmente aceito um sujeito fazer piada às custas das mulheres ou dos pretos, ou de quaisquer etnias. A discriminação foi assimilada. E as mulheres se submetem, pois tem de sobreviver, e a maioria dos negros também se submetem, pois, às vezes, parece que não há o que fazer.

Este é um país que assassina pretos e pobres, é uma veia aberta na rua, o sangue jorra nas sarjetas desse país. A barbárie, o preconceito, a discriminação, o desrespeito. Se eu fosse dar outro nome para essa mensagem, eu daria “Jesus contra o Brasil”. Esse país preconceituoso, e em muitos casos, preconceituoso em nome de Deus, que é um acinte, um achincalhe da fé.

O que Jesus fez com a mulher samaritana foi quebrar preconceitos: um atrás do outro. certamente, muito mais do que nos é possível imaginar. Estamos há dois mil anos do evento, e, por causa do nosso limite, em relação à cultura, não conseguimos ter toda a ideia do que estava acontecendo ali. 

É o mesmo caso de Marta e Maria, quando Marta estava preocupada arrumando a casa e exigindo a presença de Maria, enquanto Maria estava desfrutando da presença de Jesus. Parece que Jesus está sendo injusto com a Marta, porque ela realmente estava tendo trabalho, mas não era essa a questão. A questão é que Maria estava sentada aos pés de Jesus ouvindo os ensinos dele, e isso só era permitido aos homens. Só os homens podiam ser discipulos, as mulheres não, então as mulheres não se assentavam aos pés dos mestres. Marta estava tentando salvar a Maria da vergonha, e Jesus do vexame. Mas Jesus aceita a presença de Maria, o que significava que ele aceitava Maria como discípula, e adverte Marta sobre sua agitação. Na verdade, o que Jesus estava dizendo é: ‘Marta, você também devia se sentar aqui’. Não temos ideia de quantos tabus e preconceitos que Jesus rompeu.

A pergunta que nós fizemos foi: do quê se alimenta aquele que fez jejum de si mesmo? Ele se alimenta de ser instrumento de Deus para a realização da sua obra. E qual é a obra de Deus? Libertar os homens de toda a sorte de opressão, a começar pelo preconceito. Essa é a obra de Deus.

Aquela mulher levou todos de sua aldeia para encontrar com Jesus, e eles se converteram. Jesus quebrou mais um tabu, pregou o evangelho, apresentou-se, ele o Messias de Israel, aos samaritanos, e os samaritanos creram nEle. Os judeus devem ter ficado muito irritados com Jesus!

Que nós, a Igreja de Jesus, entendamos qual é o nosso papel na Terra, temos de sair dessa religião individualista, que vive pedindo benção para Deus, mas nunca se torna benção na mão de Deus. Por quê esse país tornou-se esse câncer exposto quando a fé cristã parece crescer tanto? Porque a fé cristã que está crescendo, não é a fé que, de um lado faz jejum de si mesmo, e, de outro lado, se alimenta em realizar a obra de libertação de Deus.

Para nós, homens, cumprirmos o nosso papel masculino e sermos os sacerdotes da nossa casa, nós não precisamos ter medo da inteligência, quanto mais brilhante for a pessoa que estiver do nosso lado, mais fácil é ser sacerdote. Os homens estão abrindo mão da sua postura de sacerdotes do lar e estão, cada vez mais, se assumindo como gente que se defende, sendo cada vez mais violentos. E a violência é a arma dos incompetentes, dos que perderam o seu sentido de função na história, e perderam a sua identidade.

Homem, seja o sacerdote da sua casa, seja o sujeito que leva a sua casa a orar, seja o sujeito que leva a sua casa para Deus. E que Deus o tenha agraciado com esposa e filhos brilhantes. E não pense que autoridade é a arte de mandar, autoridade é a arte de ser admirado, e quanto mais uma pessoa aprende a ouvir e a ponderar, antes de decidir, mais admirado é. Porque na multidão dos conselhos há sabedoria.

Jesus quebrou muitos tabus sem em nenhum momento, abrir mão da sua posição. Nesse texto, Jesus denunciou o preconceito de uma geração, libertando uma mulher de um estigma negativo, e, na prática, dizendo para ela: “ Eu vim lhe trazer Vida Eterna! E a Vida Eterna fará você transcender, superar qualquer preconceito e enfrentar os preconceituosos.” Que Deus nos abençoe!

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Ariovaldo Ramos é Pastor da Igreja Batista da Água Branca e faz parte do Conselho de Referência da Rede FALE

domingo, 18 de maio de 2014

Dia 18 de Maio e a secular exploração brasileira

Caio Marçal

Naquele momento os discípulos chegaram a Jesus e perguntaram: "Quem é o maior no Reino dos céus? ". Chamando uma criança, colocou-a no meio deles, e disse: "Eu lhes asseguro que, a não ser que vocês se convertam e se tornem como crianças, jamais entrarão no Reino dos céus. Portanto, quem se faz humilde como esta criança, este é o maior no Reino dos céus. "Quem recebe uma destas crianças em meu nome, está me recebendo“. Mateus 18: 1-5

O “Dia Nacional de Enfrentamento ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes”,  foi instituído por lei Lei Federal no dia 18 DE MAIO. Essa decisão marca uma conquista  histórica  pelos Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes em todo o país.  
Essa data foi escolhida em memória da menina Araceli, que no 18 de maio de 1973, na cidade de Vitória (ES),  foi a vítima de um crime bárbaro chocou todo o país. Infelizmente esse crime de natureza hedionda, até hoje está impune. Esse dia é um convite para a sociedade brasileira reflita e se conscientize em relação a esse tipo de violência que macula a vida de nossos pequeninos. Nesse sentido, apoiamos  o  “Bola na Rede – Um gol pelos direitos de crianças e adolescentes“,  que tem como eixo maior o de enfrentamento à exploração sexual de crianças e adolescentes no turismo.  O Brasil é o segundo pais com o maior número de casos de exploração sexual de crianças e adolescentes no turismo em todo mundo
É preciso lembrar que esse tipo de crime não alicia preferencialmente qualquer criança, mas tem como vítima preferencial  meninas pobres e negras no Brasil, o que nos lembra das raízes fundantes de nosso país. A violência baseada no poder patriarcal primeiro atingiu os indígenas, veio depois com força descomunal contra negros e negras.  Porém, são essas negras o objeto  da tara do homem branco, fazendo-as escravas sexuais.  Além do abuso direto por parte de seus senhores, as escravas era também obrigadas a se prostituir como mecanismo  de maior lucro para seus donos. Segundo Gilberto Freyre, muitas delas eram obrigadas a se prostituir desde dez, doze anos.
Ao perceber o perfil dessas que são tragadas pelo sistema de exploração sexual no turismo no Brasil é uma versão moderna de que já havia no passado, pois reproduz as relações de poder de uma sociedade que ainda não rompeu dessa lógica escravocrata e machista. 
A memória do Dia 18 de Maio convoca para a superação de uma lógica que ainda não superou essa mentalidade desumana. Nossa intercessão é que a Igreja de Jesus entenda que a criança, tida como modelo no Projeto do Reino de Deus, seja voz em favor desses pequeninos escravizados pela maldade humana. 
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Caio Marçal é missionário e é Facilitador Nacional da Rede FALE

Dia 18 de Maio e Copa do Mundo: o que há para celebrar?

Dia 18 de Maio e Copa do Mundo: o que há para celebrar?
Alexandre Gonçalves

Corria o ano de 2009. Eu trabalhava como coordenador nacional do Programa CLAVES quando participei de um evento na Câmara Municipal de São Paulo para tratar do enfrentamento e prevenção da violência contra crianças e adolescentes. Naquela ocasião uma das falas ficou à cargo da Dra. Maria Amélia Azevedo, precursora e referência nacional nessa temática. Como era de se esperar a mesa principal estava composta por vários vereadores, dezenas deles, os quais nunca haviam levantado um dedo em favor das crianças em situação de risco. Mas lá estavam eles, fazendo bem o seu papel de aparecer na foto que seria manchete no dia seguinte na principal cidade do país.

Feitas as incontáveis e cansativas honrarias da casa, a Dra. Maria Amélia foi convidada a assumir o microfone e fazer sua apresentação. Havia uma grande expectativa por aquela apresentação, não somente de minha parte, mas de muitas outras pessoas como pude perceber nas conversas de corredor. E como era de se esperar a fala da Dra. Maria Amélia foi impactante, mas não do modo como muitos esperavam, principalmente os vereadores presentes. Logo de início ela afirmou: “a violência contra a criança e o adolescente começa aqui nessa casa.” Ela seguiu denunciando com enorme indignação a quantia irrisória de dinheiro investido pela prefeitura em educação, a ausência de programas específicos de prevenção, a inexistência de um sistema integrado de notificação, o sucateamento dos conselhos tutelares, dentre outros assuntos que geraram um enorme, mas extremamente necessário, desconforto entre os presentes. Por ocasião de mais um 18 de Maio, Dia Nacional de Enfrentamento ao Abuso e à Exploração Sexual contra Crianças e Adolescentes, e há um mês da Copa do Mundo as palavras da Dra. Maria Amélia me vieram à minha mente.

A disparidade entre o que foi gasto na preparação do Mundial – não só na construção superfaturada dos estádios e das chamadas obras de acessibilidade urbana (muitas inacabadas), mas também na segurança, reforçada para conter as manifestações que certamente se intensificarão – e o montante investido na infância e adolescência é gigantesca. Informações recentes e proveniente do próprio governo federal dão conta que os custos da Copa do Mundo no Brasil giram em torno de R$ 25,6 bilhões. Isso representa um número quase dez vezes maior do que o previsto, quando o país foi eleito para sediar o Mundial, há sete anos.

É importante ressaltar que, comparado com investimentos em outros setores, o investimento público nessa população é historicamente baixo, e não pode ser colocado somente na conta do atual governo. A possibilidade de sediar jogos da Copa do Mundo também fez com que os olhos de muitos governadores e prefeitos brilhassem, bem como os de seus amigos empreiteiros.

Há nessa disparidade histórica, ressaltada recentemente pela Copa do Mundo, uma relação perversa entre o poder econômico e a violação dos direitos humanos. Sabe-se, tanto por meio da imprensa, quanto dos profissionais do sistema de proteção à infância e adolescência e de pouquíssimos parlamentares envolvidos com o tema, que os canteiros de obras dos estádios que sediarão o Mundial da FIFA serviram como ponto para a exploração sexual de crianças de até 12 anos de idade. Ou seja, mesmo sendo o Brasil referência mundial com relação a uma legislação específica destinada para proteção e garantia de direitos de crianças e adolescentes, o ECA, e estando há alguns anos sob os holofotes da imprensa internacional, não conseguiu fiscalizar adequadamente sequer os principais palcos da grande festa que calcula-se, será assistida por aproximadamente 3,6 bilhões de pessoas em todo o mundo. Tampouco a FIFA sinalizou interesse em participar das discussões sobre o tema da exploração nos arredores dos estádios. Afinal, eles estão em um negócio, e não dispostos a contribuir para resolver os problemas sociais dos países por eles temporariamente colonizados.

Não se trata aqui da preocupação do Brasil em passar vergonha diante do mundo, mas de não se envergonhar diante de si mesmo, ao se dar conta de que, para sobreviver, meninas e meninos que deveriam estar estudando em escolas descentes tem os seus corpos e dignidade violados por alguns minutos em troca de alguns reais. Mas como diriam dois meninos pobres de outrora, agora adultos enriquecidos graças ao futebol e inúmeros contratos de publicidade, “não se faz Copa do Mundo com escolas”.

Não há como generalizar e dizer que nada foi feito. O Brasil realmente avançou desde a criação do ECA. Sistemas de notificação e denúncia foram criados, assim como conselhos nacionais, estaduais e municipais da criança e do adolescente, conselhos tutelares, varas da infância e da adolescência, equipes multidisciplinares de atendimento, acordos e convênios com organizações nacionais e internacionais de defesa de direitos, meios de arrecadação de impostos voltados para a infância e adolescência, etc. E é justamente pelas sementes que foram plantadas nesses anos que vejo como inadmissível que crianças e adolescentes continuem a serem comercializados neste país. Eu, como tantos outros profissionais, acreditamos na potencialidade do ECA, desde que ele seja plenamente e constantemente colocado em prática, não somente por este ou aquele governo, mas por toda a sociedade, como preconiza o estatuto.

Mas a julgar pela atual e abominável prática da exploração sexual comercial próxima ou distante dos estádios – não importa –, e pela ineficiência do poder público na tomada de providências urgentes, parece haver mais orgulho em sediar um mundial e atrair turistas, atraindo bilhões de reais para o setor privado, do que a honra de contribuir para a erradicação de da exploração sexual comercial de crianças e adolescentes deste país.

Trabalhando há quase 10 anos com a prevenção de diversos tipos de violência contra crianças e adolescentes, tenho plena consciência que a tarefa de sua erradicação é extremamente complexa. O problema envolve múltiplos fatores, como falta de educação sobre a sexualidade, frágeis laços familiares, incapacidade dos adultos em lidar com suas frustrações ou fantasias, incapacidade de ver a criança e o adolescente como sujeitos de direitos e não como objetos, cultura do consumo, machismo, sexismo, questões econômicas (no caso da exploração sexual comercial), dentre outros. A erradicação, se possível, será lenta e processual, e deverá envolver toda a sociedade em diversas frentes de atuação.

O sistema da exploração sexual comercial de crianças e adolescentes, assim como qualquer outro sistema opressivo e desumano, em última instância, faz daqueles que nele estejam envolvidos todos vítimas. Tanto a criança e o adolescente explorados sexualmente, a família pouco informada (ou tantas vezes conivente), os/as aliciadores/as, facilitadores/as, clientes, bem como todos/as aqueles/as que silenciam para a realidade da exploração, estão inseridos no ciclo da violência. Vítimas e vitimizadores são escravos de um sistema perverso que desumaniza a todos. Para romper com esse ciclo é preciso reconhecer sua existência, indignar-se contra ele, agir apropriadamente, seja na prevenção, no apoio às vítimas, na denúncia dos envolvidos para que sejam devidamente responsabilizados, e na cobrança constante das autoridades para que realizem seu papel, principalmente no que se refere à prevenção. Quando não lutamos para romper o ciclo da violência, contribuímos para sustentá-lo.

Naquele dia de 2009, a Dra. Maria Amélia Azevedo terminou sua desconcertante fala repetindo o que escreveu durante décadas e que motivou e continua a motivar diversos profissionais, mas que parece continuar passando ao largo dos administradores públicos: a questão da violência contra a criança e o adolescente é um tema de orçamento público.

Falar de investimentos maciços em educação, saúde, cultura, etc., já se tornou um lugar comum nesse país   Mas imagine o impacto que R4 25,6 bilhões bem investidos somente na prevenção e no enfrentamento da violência contra crianças e adolescentes teria a curto e médio prazo. Não se pode afirmar que com esse dinheiro se garantiria a erradicação do problema, pois há inúmeros fatores subjacentes a ele, como citei anteriormente. A questão é se existe vontade política para tal.
Que este 18 de Maio também sirva para nos conscientizar que nenhum candidato à cargo público deverá ter nossa atenção sem antes dizer o quanto pretende investir na infância e na adolescência, tanto para promovê-los enquanto seres humanos, quanto para protegê-los de situações de risco.

Alexandre Gonçalves
alexandre.gonca@hotmail.com
Consultor em Prevenção da Violência Sexual Contra Crianças e Adolescentes – Programa CLAVES Brasil
Mestrando em Teologia com ênfase em Estudos da Paz

Ministro da Igreja da Irmandade

quinta-feira, 15 de maio de 2014

Alimento para a reflexão

Vinoth Ramachandra


Joseph Ratzinger, que acaba de renunciar como Papa Bento XVI, não foi tão popular, para não dizer tão santo,

como João Paulo II, seu predecessor. Mas ele adquiriu uma bem merecida reputação como “Papa Verde”, tornando o Vaticano o primeiro país neutro em carbono do mundo, colocando milhares de painéis solares nos seus telhados (um projeto que venceu o Prêmio Euro Solar 2008) e comprometendo o Vaticano com a obtenção de 20% de sua energia de fontes renováveis até 2020.


Ratzinger foi sempre um apaixonado por animais. Ele põe em prática o ensino oficial da Igreja, ensinando que devemos ser amorosos com os animais não-humanos, e que é moralmente errado causar neles sofrimento gratuito. Em entrevista a um jornalista alemão, antes de se tornar Papa, ele disse: “Os animais também são criaturas de Deus. Não há dúvida de que o tipo de uso industrial destas criaturas, onde gansos são alimentados de um modo a produzir fígados tão grandes quanto possível, ou frangos vivendo tão compactados que se tornam apenas caricaturas de pássaros; esta degradação das criaturas vivas em mercadorias parece, no meu entender, contradizer na verdade o relacionamento de mutualidade que se encontra na Bíblia”.


Em seu primeiro sermão como Papa ele retornou a este tema: “Os desertos exteriores estão crescendo no mundo porque os desertos interiores têm se tornado muito grandes. Os tesouros da terra não servem mais para construir o jardim de Deus para que nele vivamos; antes, eles têm sido feitos para servir aos poderes de exploração e destruição”.


O período de 40 dias da Quaresma no calendário litúrgico da Igreja foi pensado para ser um tempo de preparação espiritual para a Páscoa. Mas, na prática, a Quaresma muitas vezes se degenerou em atos de masoquismo sem sentido (de “Eu estou parando com o café/chocolate na Quaresma” a rituais de autoflagelação no “catolicismo popular”). Lembro de meus vizinhos muçulmanos que jejuam meticulosamente durante o dia durante o Ramadan, para depois festejar suntuosamente à noite.


Se o propósito do jejum é nos forçar (cristãos ricos) a ser mais atentos aos clamores dos pobres, a refletir sobre nossos estilos de vida egoístas e mudar de direção, então em vez de parar (digamos) de beber café por quarenta dias, seria melhor utilizar o tempo da Quaresma para estudar as condições sob as quais o café é produzido no mundo, quem ganha e quem perde, e então quem sabe boicotar as companhias de café gourmet cujos produtos nós consumimos impensadamente.


Na verdade, alimentação é um tópico que agrupa várias questões relacionadas à justiça. Parar apenas para nos perguntar “Quem faz a comida que comemos, e a que custo para o resto da criação e para as futuras gerações?” abre uma diversidade de desafios morais inquietantes.


Eis aqui apenas uma amostra:


1. Crueldade com animais. Você não precisa ser vegetariano para ficar horrorizado, como o Papa, com as condições terríveis sob as quais muitos animais são alimentados e mortos para satisfazer as demandas de uma sociedade de consumo. Porcos, gansos e patos confinados são tratados como “mercadorias” (separados de suas mães, artificialmente engordados e inseminados). Muitos de nós na Igreja participamos deste pecado estrutural através do nosso silêncio.


2. Práticas intensivas de agricultura e pesca. O uso de redes-arrastão em ampla escala, no Mar do Norte, tem exaurido os suprimentos de peixe, e o mesmo está acontecendo no Oceano Índico. Pescadores do Sri Lanka e do Sul da Índia se agridem quase todo dia ao longo da costa da ilha; a razão é que as águas costeiras do Sul da Índia têm sido desabastecidas de peixes pelos métodos de pesca insustentáveis, forçando os pescadores do estado de Tamil Nadu a pescar ilegalmente nas águas do Sri Lanka.


3. Desperdício. De acordo com o Instituto de Engenheiros Mecânicos da Inglaterra, cerca da metade da comida produzida no mundo a cada ano termina sendo desperdiçada. Eles culpam os prazos de validade desnecessariamente curtos, a prática do “compre-um-leve-dois” e as demandas dos consumidores ocidentais de comida cosmeticamente perfeita, juntamente com “práticas agrícolas e de engenharia pobres” e instalações de estocagem inadequadas em muitos países em desenvolvimento.


4. Mudanças climáticas. As comunidades pobres ao redor do mundo sofrem cada vez mais os eventos climáticos intensos e padrões variáveis de clima causados por emissões de gases de efeito estufa nas nações mais ricas. Desertificação, pragas e inundações estão crescendo a passos largos. O ano passado foi o mais árido da história dos EUA; enquanto que milhares de pequenos agricultores na Índia cometem suicídio a cada ano por causa das monções malsucedidas, endividamento a agiotas e a diminuição da terra arável.


5. Comércio injusto. Enormes subsídios governamentais pagos aos fazendeiros e ao agronegócio nos Estados Unidos e na União Europeia, combinados com impostos sobre a comida importada, significa que agricultores nos países pobres não podem competir e, assim, abandonam inteiramente a atividade agrícola. 75% da produção alimentar do mundo está nas mãos de apenas três corporações. Enquanto nenhuma decisão sobre os efeitos tóxicos dos alimentos geneticamente modificados (OGMs) nos seres humanos e no meio ambiente foi ainda tomada, a questão de quem tem acesso às sementes geneticamente modificadas tem uma resposta clara: apenas agricultores ricos podem comprar as sementes de gigantes como a Monsanto. Um sistema global de patentes injusto piora as desigualdades entre e dentro das nações.


Os profetas bíblicos foram fortemente críticos no seu desprezo daqueles que pensavam do jejum como uma técnica religiosa para ter Deus ao seu lado:


O jejum que desejo não é este:
soltar as correntes da injustiça,
desatar as cordas do jugo,
pôr em liberdade os oprimidos
e romper todo jugo?
Não é partilhar sua comida com o faminto,
abrigar o pobre desamparado,
vestir o nu que você encontrou,
e não recusar ajuda ao próximo?
(Isaías 58. 6, 7)


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Texto publicado por Novos Diálogos