quinta-feira, 15 de maio de 2014

Alimento para a reflexão

Vinoth Ramachandra


Joseph Ratzinger, que acaba de renunciar como Papa Bento XVI, não foi tão popular, para não dizer tão santo,

como João Paulo II, seu predecessor. Mas ele adquiriu uma bem merecida reputação como “Papa Verde”, tornando o Vaticano o primeiro país neutro em carbono do mundo, colocando milhares de painéis solares nos seus telhados (um projeto que venceu o Prêmio Euro Solar 2008) e comprometendo o Vaticano com a obtenção de 20% de sua energia de fontes renováveis até 2020.


Ratzinger foi sempre um apaixonado por animais. Ele põe em prática o ensino oficial da Igreja, ensinando que devemos ser amorosos com os animais não-humanos, e que é moralmente errado causar neles sofrimento gratuito. Em entrevista a um jornalista alemão, antes de se tornar Papa, ele disse: “Os animais também são criaturas de Deus. Não há dúvida de que o tipo de uso industrial destas criaturas, onde gansos são alimentados de um modo a produzir fígados tão grandes quanto possível, ou frangos vivendo tão compactados que se tornam apenas caricaturas de pássaros; esta degradação das criaturas vivas em mercadorias parece, no meu entender, contradizer na verdade o relacionamento de mutualidade que se encontra na Bíblia”.


Em seu primeiro sermão como Papa ele retornou a este tema: “Os desertos exteriores estão crescendo no mundo porque os desertos interiores têm se tornado muito grandes. Os tesouros da terra não servem mais para construir o jardim de Deus para que nele vivamos; antes, eles têm sido feitos para servir aos poderes de exploração e destruição”.


O período de 40 dias da Quaresma no calendário litúrgico da Igreja foi pensado para ser um tempo de preparação espiritual para a Páscoa. Mas, na prática, a Quaresma muitas vezes se degenerou em atos de masoquismo sem sentido (de “Eu estou parando com o café/chocolate na Quaresma” a rituais de autoflagelação no “catolicismo popular”). Lembro de meus vizinhos muçulmanos que jejuam meticulosamente durante o dia durante o Ramadan, para depois festejar suntuosamente à noite.


Se o propósito do jejum é nos forçar (cristãos ricos) a ser mais atentos aos clamores dos pobres, a refletir sobre nossos estilos de vida egoístas e mudar de direção, então em vez de parar (digamos) de beber café por quarenta dias, seria melhor utilizar o tempo da Quaresma para estudar as condições sob as quais o café é produzido no mundo, quem ganha e quem perde, e então quem sabe boicotar as companhias de café gourmet cujos produtos nós consumimos impensadamente.


Na verdade, alimentação é um tópico que agrupa várias questões relacionadas à justiça. Parar apenas para nos perguntar “Quem faz a comida que comemos, e a que custo para o resto da criação e para as futuras gerações?” abre uma diversidade de desafios morais inquietantes.


Eis aqui apenas uma amostra:


1. Crueldade com animais. Você não precisa ser vegetariano para ficar horrorizado, como o Papa, com as condições terríveis sob as quais muitos animais são alimentados e mortos para satisfazer as demandas de uma sociedade de consumo. Porcos, gansos e patos confinados são tratados como “mercadorias” (separados de suas mães, artificialmente engordados e inseminados). Muitos de nós na Igreja participamos deste pecado estrutural através do nosso silêncio.


2. Práticas intensivas de agricultura e pesca. O uso de redes-arrastão em ampla escala, no Mar do Norte, tem exaurido os suprimentos de peixe, e o mesmo está acontecendo no Oceano Índico. Pescadores do Sri Lanka e do Sul da Índia se agridem quase todo dia ao longo da costa da ilha; a razão é que as águas costeiras do Sul da Índia têm sido desabastecidas de peixes pelos métodos de pesca insustentáveis, forçando os pescadores do estado de Tamil Nadu a pescar ilegalmente nas águas do Sri Lanka.


3. Desperdício. De acordo com o Instituto de Engenheiros Mecânicos da Inglaterra, cerca da metade da comida produzida no mundo a cada ano termina sendo desperdiçada. Eles culpam os prazos de validade desnecessariamente curtos, a prática do “compre-um-leve-dois” e as demandas dos consumidores ocidentais de comida cosmeticamente perfeita, juntamente com “práticas agrícolas e de engenharia pobres” e instalações de estocagem inadequadas em muitos países em desenvolvimento.


4. Mudanças climáticas. As comunidades pobres ao redor do mundo sofrem cada vez mais os eventos climáticos intensos e padrões variáveis de clima causados por emissões de gases de efeito estufa nas nações mais ricas. Desertificação, pragas e inundações estão crescendo a passos largos. O ano passado foi o mais árido da história dos EUA; enquanto que milhares de pequenos agricultores na Índia cometem suicídio a cada ano por causa das monções malsucedidas, endividamento a agiotas e a diminuição da terra arável.


5. Comércio injusto. Enormes subsídios governamentais pagos aos fazendeiros e ao agronegócio nos Estados Unidos e na União Europeia, combinados com impostos sobre a comida importada, significa que agricultores nos países pobres não podem competir e, assim, abandonam inteiramente a atividade agrícola. 75% da produção alimentar do mundo está nas mãos de apenas três corporações. Enquanto nenhuma decisão sobre os efeitos tóxicos dos alimentos geneticamente modificados (OGMs) nos seres humanos e no meio ambiente foi ainda tomada, a questão de quem tem acesso às sementes geneticamente modificadas tem uma resposta clara: apenas agricultores ricos podem comprar as sementes de gigantes como a Monsanto. Um sistema global de patentes injusto piora as desigualdades entre e dentro das nações.


Os profetas bíblicos foram fortemente críticos no seu desprezo daqueles que pensavam do jejum como uma técnica religiosa para ter Deus ao seu lado:


O jejum que desejo não é este:
soltar as correntes da injustiça,
desatar as cordas do jugo,
pôr em liberdade os oprimidos
e romper todo jugo?
Não é partilhar sua comida com o faminto,
abrigar o pobre desamparado,
vestir o nu que você encontrou,
e não recusar ajuda ao próximo?
(Isaías 58. 6, 7)


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Texto publicado por Novos Diálogos

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